
Sabes o que se sente quando somos refugiados? Um dia temos uma vida, amigos, casa, e andamos numa escola. Acordamos todos os dias com a crença na palavra futuro. De rompante, há um dia em que ouves o estrondo dos bombardeamentos. És criança e dizem-te – deita-te no chão! Cala-te. Depois … Aos cinco anos, as memórias são negativos de rolos fotográficos guardados. Hoje as imagens da televisão, sem permissão, revelaram todos esses negativos e as fotografias do meu passado são projectadas dolorosamente nítidas.
Dou por mim perdida no tempo. A coluna de camiões onde fugíamos de Huambo na esperança de nos acolherem no Zimbábue. Sem nada. A sobrevivência como meta.
Durante muito tempo não queria dormir para não sonhar o medo. Apagar para sempre a imagem da metralhadora apontada à minha família, esquecer as cores pardas das tendas do campo de refugiados, o sabor do leite em pó e, sobretudo o cheiro a criólina…
O tempo ilude-nos com promessas de intocabilidade. Acreditamos que somos outros, diferentes e renovados das experiências de brutalidade que nos roubaram a inocência. Dizemos a nós próprios que já passou, já é passado, que viramos a página. Tudo não passa de um truque de avestruz. Um buraco onde escondemos a nossa cabeça.
Acordo triste. A televisão coloca-me na sala milhares de gémeos dos horrores que também vivi. A Guerra torna-nos iguais. Pouco importa quando e onde aconteceu. Se foi em África ou se é na Ucrânia. Para os que sobrevivem o resultado é uma ferida aberta sem previsão de cicatriz.
Será importante esquecer?
É vital esquecer. Mas é um esquecimento feito missão de vida. Uma tarefa, um projecto, uma digestão longa e demorada. Diria mesmo que é uma obra impossível de finalizar numa geração. Um legado e herança que passa de pais para filhos.
Uma história obrigatoriamente repetida em todos os encontros de família como se de um exorcismo se tratasse, como uma cerimónia de purificação ou a tentativa enlouquecida de transformar a ferida numa tatuagem que se transporta com a honra e a dignidade de um memorial.